Urologia

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REFLUXO VESICOURETERAL

Definição

A junção ureterovesical (união entre ureter e bexiga), em condições normais, funciona como uma válvula unidirecional permitindo que a urina entre na bexiga mas impedindo seu retorno para o ureter. Através deste mecanismo o rim é protegido das alterações de pressão vesical assim como de urina eventualmente infectada com bactérias. Quando ocorre fluxo retrógrado de urina pela junção ureterovesical é chamado de refluxo vesicoureteral (RVU) sendo sempre anormal.

Quando ocorre

O RVU é a anomalia congênita mais frequente do trato urinário nas crianças. A maior incidência é no sexo feminino, no entanto, os meninos quando se apresentam com infecção urinária tem maior chance de apresentar refluxo de urina para o rim. Os meninos geralmente manifestam a presença do refluxo em idade mais precoce e com maior intensidade de refluxo. A realização da postectomia também parece influenciar a predisposição para infecção, pois os meninos não operados, durante os primeiros meses de vida, possuem uma chance dez vezes maior de apresentarem infecção urinária quando comparados aos já operados.

A incidência de refluxo é proporcional à idade da criança avaliada. Sua incidência é inversamente proporcional à idade em pacientes com infecção urinária como mostra a tabela 1. Esta queda na incidência provavelmente corresponde a resolução espontânea do refluxo que ocorre com o crescimento natural da bexiga.

Mais de 45% dos irmãos de crianças com RVU apresentam o mesmo diagnóstico, no entanto, 75% destes são assintomáticos, ou seja, não apresentam infecção urinária. Não existe relação entre a intensidade do refluxo entre crianças da mesma família.

Tabela 1. Incidência de refluxo em pacientes com infecção do trato urinário
Idade (ano) Incidência de Refluxo (%)
< 1 70
4 25
12 15
Adultos 5.2

Por que ocorre e conseqüências do refluxo urinário

O ureter atravessa obliquamente a parede da bexiga tendo comprimento submucoso na criança de 5 a 10 mm e no adulto de 10 a 15mm. Durante o enchimento vesical a porção intramural do ureter é comprimida de encontro à musculatura vesical. Na micção este trajeto ureteral é tracionado pela musculatura da bexiga no sentido caudal aumentando seu comprimento de forma a permitir ação da pressão intravesical e impedindo o refluxo da urina para o ureter.

O refluxo é chamado de primário quando não apresenta componente obstrutivo funcional ou anatômico. O fator mais importante na competência da junção ureterovesical é o comprimento do ureter submucoso em relação ao seu diâmetro. A relação de 5:1 do comprimento submucoso ureteral para o diâmetro do ureter é encontrado em crianças normais e relações menores que 1,5 : 1 encontradas em crianças com refluxo. A fraqueza do complexo muscular ureter-trígono vesical resulta também em inadequado mecanismo antirefluxo. O refluxo primário em adultos provavelmente apresenta os mesmos mecanismos congênitos daqueles encontrados nas crianças.

A refluxo de urina sob pressão pelo ureter e sistema coletor durante a micção ocasiona dilatação progressiva de ambos em maior ou menor grau, sendo este parâmetro utilizado na classificação do refluxo.

O RVU é especialmente importante quando propicia refluxo de urina para dentro do rim. Estudos experimentais mostraram que caso a urina esteja contaminada, causará uma bacteriúria intrarrenal, com consequente infecção renal e lesão do parênquima. O resultado dessas lesões são as cicatrizes renais cujo conjunto ocasiona a chamada nefropatia do refluxo.

O refluxo intrarenal ocorre mais frequentemente em lactentes e crianças no primeiro ano de vida, assim o risco de RVU é mais alto nesse período do que em qualquer outro, no entanto, as cicatrizes renais ocorrem com maior frequência até os 5 anos de vida.

A nefropatia do refluxo é a principal causa de insuficiência renal e hipertensão severa na infância. A correção do refluxo tanto espontânea ou cirúrgica não reverte a predisposição para hipertensão em pacientes com cicatrizes renais, no entanto, seu desaparecimento

Como se apresenta

A apresentação clínica do RVU é decorrente de sua complicação mais frequente que é a infecção urinária. Esta infecção é facilitada pela urina residual que retorna dos rins para a bexiga após a micção e também pela dinâmica vesical muitas vezes anormal prejudicando o seu esvaziamento normal durante a micção.

A manifestação clínica da infecção varia conforme a idade do paciente, podendo apresentar desde um quadro de cistite, com ardência ao urinar, aumento da freqüência das micções e diminuição do intervalo até casos mais graves de infecção no rim com dores nas costas e febre.

Os neonatos e crianças pequenas apresentam-se com sinais e sintomas inespecíficos, geralmente sem febre, com desconforto abdominal, fraqueza e desidratação.

A febre é o sintoma chave que permite a diferenciação da infecção renal grave e da cistite (infecção da bexiga) ,mas não é totalmente fidedigna, podendo estar ausente em alguns casos de infecção dos rins. Na prática, toda febre alta em crianças, principalmente no primeiro ano de vida, deve-se suspeitar de infecção urinária.

Algumas crianças, principalmente do sexo masculino, podem não apresentar sintomas. Nesses casos o refluxo não é detectado e as crianças podem evoluir com retardo do desenvolvimento e ganho de peso, insuficiência renal, hipertensão e lesões renais.

Como fazer o diagnóstico

Aproximadamente 30 a 40% das crianças com infecção urinária apresentam RVU, sendo que em 30% dessas já são encontradas evidências de lesões renais geralmente proporcionais ao grau do refluxo. A lesão renal pode ocorrer após o primeiro episódio de infecção mesmo na ausência de febre. Estes dados intensificam a necessidade de investigação radiológica em qualquer criança com infecção.

A avaliação radiológica é realizada baseando-se no sexo, idade e quadro clínico do paciente. A avaliação inclui uretrocistografia miccional, que consiste na injeção de contraste na bexiga para verificar a presença de refluxo para o ureter, e ultra-som do trato urinário a serem solicitados em qualquer criança menor de 5 anos com infecção urinária comprovada por cultura de urina, naquelas com infecção urinária apresentando febre independente da idade e qualquer criança do sexo masculino com infecção urinária.

As crianças devem ser mantidas com antibioticoterapia profilática obrigatória após a melhora da infecção até que a avaliação radiológica esteja completa. A uretrocistografia é realizada 3 semanas após a resolução da infecção e permite avaliar a presença de refluxo bilateral ou unilateral, a intensidade do refluxo e a dilatação dos rins.

A ultrassonografia não excluiu a presença de RVU principalmente nos graus mais baixos onde ocorre pouca dilatação do trato urinário mas pode ser útil no acompanhamento dos pacientes.

Quando o RVU é diagnosticado, faz-se necessária à pesquisa de possíveis lesões renais já existentes. A cintilografia renal com DMSA é o melhor exame no diagnóstico dessas “cicatrizes” renais.

Diante da dificuldade em se comparar a evolução natural e as formas de tratamento, o Comitê Internacional para o estudo do refluxo vesicoureteral formulou em 1981 uma classificação internacional baseada nos achados da uretrocistografia retrógrada. Com a padronização da intensidade do RVU a comparação de estudos tornou-se possível, permitindo um grande avanço na compreensão e abordagem dos pacientes.

O refluxo é classificado em 5 graus baseado na dilatação do sistema coletor e alterações da anatomia renal como mostrado na tabela 2 e figura 2 e 3.

Tabela 2. Sistema Internacional de Classificação do Refluxo Vesicoureteral
Grau Refluxo
I Até ureter não dilatado
II Até pelve e cálices não dilatados
III Dilatação leve a moderada do ureter, pelve renal e cálices
IV Moderada tortuosidade ureteral e dilatação da pelve e cálices Baqueteamento dos cálices é característico deste grau
V Dilatação grande do ureter, pelve e cálices com perda da impressão papilar e tortuosidade ureteral

Figura 2. Desenho esquemático dos graus de refluxo vésico-ureteral com classificação realizada através de uretrocistografia retrógrada.

Figura 3. Classificação radiológica de refluxo vésico-ureteral. Graduação de I a V.

História Natural

O RVU tem resolução espontânea em muitas crianças, embora dependa do seu grau inicial e da idade da criança no diagnóstico.

Essa evolução é baseada no aumento do trajeto ureteral na bexiga que ocorre com o crescimento da bexiga e da musculatura do ureter assim como na mudança benéfica na dinâmica vesical de baixa capacidade e instabilidade para um padrão mais maduro com maiores capacidades e menores pressões com o crescimento das crianças.

Crianças pequenas, principalmente menores que 1 ano de vida, tem maior probabilidade de resolução espontânea do refluxo independente do grau, por apresentar maior significância dos mecanismos benéficos anatômicos e funcionais nessa faixa etária.

A maioria dos refluxos grau I e II e metade dos refluxos grau III tem resolução espontânea enquanto refluxo grau IV e V raramente resolvem espontaneamente . Os refluxos unilaterais têm melhor prognóstico do que os bilaterais . A tabela 3 mostra a taxa de resolução espontânea em 5 anos em relação ao grau do refluxo na apresentação inicial.

Tabela 3. Resolução espontânea em 5 anos X grau do refluxo
Grau de refluxo Resolução espontânea em 5 anos
I e II 80%
III 50%
IV 30%
V 12%

Como e quando tratar o refluxo

Os objetivos essenciais do tratamento são a prevenção da lesão renal e controle das infecções, sendo de fundamental importância o uso de antibioticoterapia profilática continuada enquanto se observa o crescimento da criança.

Apesar do sucesso da cirurgia, ficou comprovado que o tratamento medicamentoso é efetivo na maioria das crianças. As premissas em que se ancoram as decisões no tratamento do refluxo são:

  1. Resolução espontânea ocorre na maioria das crianças e neonatos, sendo menos provável de ocorrer na puberdade.
  2. Graus mais severos de refluxo são menos prováveis de resolver espontaneamente.
  3. Refluxo sem infecção não parece causar dano significativo ao rim.
  4. Tratamento profilático prolongado é bem tolerado pelas crianças.
  5. Cirurgias antirefluxos tem excelente resultado em mãos capacitadas.

Não é comprovado o desenvolvimento de lesão renal em crianças com refluxo que são mantidas sem infecção. O tratamento medicamentoso do refluxo é baseado nas medidas de prevenção de infecção e monitorização do trato urinário.

Antibioticoprofilaxia diária, geralmente em forma de suspensão, com 1/3 da dose díária terapêutica e administrada a noite, até resolução do refluxo. Amoxacilina ou ampicilina é utilizada em recém nascidos com menos de 6 semanas de vida, pois apesar de induzir maior resistência bacteriana apresenta menos efeitos colaterais nessa faixa etária. Após 6 semanas de vida, o sistema biliar já esta suficientemente desenvolvido para utilização do bactrin, que se torna o antibiótico de escolha. A nitrofurantonia também pode ser utilizada com menor efeito na flora intestinal. A cefalexina (Keflex) e fluoroquinilona (Floxacin) em doses correspondentes são efetivas e seguras em longo prazo.

O tratamento da constipação é de tamanha importância na prevenção de infecção que deve ser iniciado na primeira consulta.

A monitorização da função renal e uroculturas devem ser realizadas a cada 3 meses. Culturas negativas de urina são geralmente confiáveis independentes da forma de coleta, enquanto culturas positivas questionáveis, em crianças assintomáticas, podem indicar necessidade de métodos mais invasivos como cateterização ou punção suprapúbica, sobretudo nas crianças menores de 2 anos.

A cirurgia é indicada naqueles que submetidos a tratamento clínico apresentam episódio de infecção com febre e acometimento renal, não aderência ao tratamento medicamentoso, desenvolvimento de novas lesões renais e refluxo persistente em meninas na puberdade.

Nos pacientes sem lesão renal, a cirurgia é indicada como tratamento inicial apenas no refluxo grau V com crianças maiores de 1 ano de idade, nos demais, antibioticoterapia profilática é a opção recomendada. O refluxo unilateral grau IV ou bilateral grau III pode ser seguido por vários anos na ausência de cicatrizes. A cirurgia é recomendada no refluxo persistente maior que grau III ou IV unilateral ou bilateral. O termo persistente não é bem definido mas estudos mostram que 92% das crianças com refluxo Grau III, que resolvem espontaneamente, ocorrem nos primeiros 4 anos de acompanhamento. Outro elemento importante, como já mencionado, é a idade da criança quando do diagnóstico do RVU como ilustrado na figura 4B.

Os pacientes que apresentam cicatrizes ao diagnóstico têm indicação cirúrgica inicial quando apresentarem refluxo grau V e idade maior que 1 ano. Cirurgia também é recomendada quando há refluxo grau III – IV e idade superior a 6 anos ou em crianças de qualquer idade com RVU grau III ou maior persistente e cicatriz renal.

Figura 4A- Porcentagem de persistência do refluxo por grau I, II e IV, de 1 até 5 anos após o diagnóstico.

Figura 4B- Porcentagem de persistência do refluxo por idade de apresentação, grau III, de 1 até 5 anos após o diagnóstico.

A característica comum a todas as técnicas de correção do refluxo é a criação de trajeto submucoso que deve ser cinco vezes o tamanho do calibre ureteral, assim, permite a compressão do ureter contra a bexiga durante o enchimento vesical e a micção, evitando o regurgitamento de urina para os rins.

Existem mais recentemente as técnicas de correção endoscópica através da injeção de produtos no meato ureteral sendo efetivas, com taxas de sucesso de 70% em uma única aplicação, e melhores resultados após reaplicações, principalmente nos graus mais baixos. O princípio da correção é oferecer um suporte posterior ao ureter através da injeção da substância em plano submucoso, permitindo ação da pressão vesical no enchimento (Figura 5). O procedimento é minimamente invasivo e pode ser realizado em regime ambulatorial com tempo médio de 30 minutos.

Figura 5 Desenho esquemático após injeção de substância em plano submucoso abaixo do meato ureteral.

Urologia Figura 1 Figura 1

Urologia Figura 1 Figura 2

Urologia Figura 1 Figura 3

Urologia Figura 4 Figura 4

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